domingo, 8 de novembro de 2009

A arte de bem fazer marmelada


Pode parecer exagerado, mas a verdade é que a marmelada aparece sempre ligada ao conceito de prazer, e não apenas por ser doce. Em favor desta teoria, que adiante se desenvolverá, pode mesmo invocar-se abonação real, chamando a terreiro o exemplo do Rei Magnânimo, D. João V, um dos mais célebres comedores de ladrilhos de marmelada da história de Portugal, ele próprio responsável por muita da marmelada que no século XVIII se fez no Convento de Odivelas, durante o seu longo reinado de 44 anos.Conta-se, e a história confirma, que o Rei, beato e muito dado a superstições e bruxarias, já se tinha tornado conhecido como frequentador assíduo do Convento, quando para lá entrou uma bonita jovem de 17 anos, Paula Teresa da Silva e Almeida, mais tarde celebrizada com o nome simples de madre Paula. D. João V era tudo menos um platónico freirático. Guloso, galanteador, mulherengo e apaixonado, transformou-se num autêntico «coureur de femmes», e era vê-lo apear-se do seu coche, à porta do convento, «para ir ler papéis de solfa com as freiras assentadas nos joelhos», como diz Júlio Dantas, que lhe chama «galo de Odivelas e de Via Longa».D. João V apaixonou-se pois pela jovem Paula Teresa, que, apesar da sua tenra idade, já era amante do Conde do Vimioso quando entrou para o convento. Foi fácil ao Rei entender-se com o Conde, e Paula passou a ser a amante preferida de D. João V, que a transformou numa espécie de Madame Pompadour, mais desejosa de conforto e de prazeres do que de sacrifícios e de cilícios. E apesar da diferença de idades (o Rei era trinta anos mais velho do que a freira), D. João V visitava-a todas as noites, ou quase. Com tal assiduidade, nada mais natural que fazer alguma marmelada – a possível, é evidente. Mas também se admite que o Rei, bem resguardado dos olhares ávidos dos súbditos, algumas vezes tenha colaborado com a amante na confecção do pudim da Madre Paula, batendo as dez gemas de ovos que a receita indica. Em questões de doçura, não lhe faltava, aliás, que fazer, nem a ele nem a outro qualquer com as mesmas facilidades à chegada à portaria: o Convento de Odivelas tornou-se famoso pelo seu receituário doceiro, no qual avultavam, além do pudim da Madre Paula, o bolo-podre, os suspiros, o toucinho-do-céu e... os ladrilhos de marmelada, de que, pelos vistos, o Rei era grande consumidor.Verdade ou não, Alberto Pimentel diz que, em Odivelas, D. João V «entremeava as pulsações do coração com as contracções do estômago, mordiscando ladrilhos de marmelada com a Madre Paula; e tanto assim que um desses quadradinhos de doce, com evidentes de mordeduras régias, serviu, juntamente com outros ingredientes de procedência menos limpa, para uma célebre sorte de bruxedo que foi um dos mais apregoados escândalos desse tempo».O caso soube-se porque em 1736 as mulatas Salemas, bruxas de Setúbal, foram acusadas de terem preparado, com a cumplicidade do Padre Bartolomeu de Gusmão e de duas freiras de Odivelas, um feitiço com o objectivo de mudar o Rei da cama da Madre Paula para a de outra freirinha mais nova e também muito bonita. O bruxedo não deu resultado e D. João V lá continuou a fazer (e a comer) marmelada com a Madre Paula, talvez na esperança de que tão doce tarefa lhe fosse levada a crédito na hora do ajuste final de contas.

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